Princesa: caem-te os olhos como moldura do rosto e dos ombros,
O colo descoberto, tentador pode ser o colo de uma mulher
A qualquer hora, e a estirpe,
Se quem foi herdeira da coroa de Portugal e regente do reino
E continua virgem precisa mostrar a estirpe, mostra-la na cabeça cingida
Por uma crespina de ouro, pérolas e pedrarias da tua real condição
E traje de corte conforme ao que a teu estado convém.
Poderia dizer-se que te vestiste respeitando o plano. E, contudo…
Convocada à encenação do corpo, ao falso natural da pose
Para te fazer chegar belíssima em retrato às cortes europeias,
Chamada à impossível inocência da figuração
Que animaria algum consorte possível – convocada, defraudaste
A oficina do pintor régio. A cara em sacrifício, a rígida postura frontal,
Frio o olhar nas faces róseas,
Como haveria de caber a tristeza de um ícone religioso
Num projecto de enlace matrimonial, mesmo sem vestígio amoroso?
Tu, Joana, Princesa, Beata, enquanto não chegava o tempo
De irmão rei inventar a razão de Estado,
Tu, num convento em Aveiro, inventavas
A falsa missiva de amor. Os artistas lutavam para inventar o retrato
E tu inventavas a santa desobediência.
A desobediência do figurado. O retrato que se nega ao encenador.
A desobediência aos astros, à nação, aos tempos, à família
E ao dever de colocar o corpo próprio e seus efeitos à ordem do mundo.
Tu, Joana, Princesa, Santa sem certificado, inventavas em silencia a palavra “não”.
A palavra “não” porque sim e aqui fico e aqui morro,
Mesmo que nunca professe neste convento de Jesus,
Como nunca professaste,
Não haverá de cumprir-se o alto desígnio de Sua Majestade
Quanto à sorte que a mim cabe
Retrato da Princesa Joana Santa. Porfírio Silva (2013), Monstros Antigos. Poesia. Lisboa: Esfera do Caos.
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